Capitalismo e resistência camponesa: o caso de Irecê/BA
Flávio Dantas Martins
Introdução
Objetiva-se a análise dos conceitos de capitalismo, modernização capitalista da agricultura e o confronto destes com material empírico levantado para a realização de um estudo de caso em andamento na região que chamamos de Caatinga de Irecê localizada dentro do Território de Irecê, interior da Bahia, durante o período da Guerra Fria.
Levanta-se a hipótese de que a transformação da agricultura camponesa em agricultura mercantil conviveu com um processo de resistência popular. Este consiste numa permanência na terra de semi-camponeses e assalariados através de um modo de uso camponês da terra com visas ao autoconsumo. Essa permanência na terra objetiva o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho melhorando as condições de sobrevivência desses trabalhadores, procedimento este que chamamos de margem de autonomia camponesa.
Capitalismo
Longe de nós a pretensão de analisar, aqui, os conceitos de capitalismo e capital e suas transformações ao longo da história e segundo as diversas correntes existentes. Limitamo-nos a trabalhar com uma delas, ao nosso ver bastante valiosa e profícua, elaborada pelo pensador alemão Karl Marx em O Capital.
Nessa obra teórica, o capital é conceituado como uma relação social envolvendo proprietários de meios de produção e proprietários tão-somente de força de trabalho, através da compra dessa por aqueles e do consumo desta visando a produção de mercadorias, na qual está presente a mais-valia, ou seja, trabalho não-pago ou supertrabalho, que realiza-se no ato do consumo, ou seja, na venda da mercadoria pelos proprietários dos meios de produção. Como condição necessária dessa relação – descrita grosseiramente – temos a formação de uma economia de mercado e como consequência temos a alienação do trabalhador de sua capacidade criativa, que torna-se incapaz de reconhecer-se no objeto produzido que, além de valor-de-uso, torna-se um valor-de-troca (MARX, 2006).
Nesse sentido, o capitalismo na agricultura seria, teoricamente, a separação realizada entre trabalhador e meios de produção. O modelo não exclui, todavia, duas possibilidades:
1) A possibilidade de o trabalhador que necessita vender sua força de trabalho para sobreviver, possuir mais algum meio de produção que, entretanto, não lhe basta no objetivo de manutenção da reprodução de sua força de trabalho, considerando-se que, na agricultura, a exigência de composição orgânica de capital para a produção é baixa, é perfeitamente aceitável a hipótese de convivência entre a produção capitalista – que sempre é produção mercantil – com a produção não-capitalista – que pode ou não ser mercantil. Sendo assim, o conceito é compatível com a realidade em que a condição de trabalhador assalariado e microproprietário é compartilhada.
2) A necessidade que o exército industrial de reserva possui de obter sua sobrevivência à margem do assalariamento pode ser satisfeita através de arranjos além do mundo do trabalho assalariado e da produção mercantil. Exército industrial de reserva não significa operário desempregado, mas população que vive de vender sua força de trabalho e que está disponível em surtos de crescimento industrial ou agrícola quem o uso da mesma seja necessária. Sendo o capitalismo não um monstro a-histórico, um supersujeito acima das relações sociais, mas uma força real sustentada por poderes simbólicos de sujeitos reais que procuram obter um consenso (BOURDIEU, 2007) é aceitável a hipótese de tentativas de subversão do capital simbólico hegemônico e da construção de opções dependentes e marginalizadas de alternativas de reprodução da força de trabalho na fronteira do mundo das leis capitalistas, ou mesmo, à margem delas. Todavia a força do capital é tamanha e a fragilidade dessa busca de uma margem de autonomia é tanta – e por isso a sua facilidade em ser realizada – que são constantemente destruídas e recriadas essas margens autônomas de sobrevivência que não são nem completamente integráveis ao sistema – por isso, mas também, sem elas o sistema ameaça um colapso social.
Francisco de Oliveira já advertia que, na incapacidade de capitalizar-se do Terciário da economia brasileira com a velocidade correspondente do Secundário, realizou-se uma simbiose entre uma “moderna” produção industrial de bens de consumo com um Terciário “não-capitalístico”, casamento entre capitalismo e pré-capitalismo para a acumulação de capital. O capitalismo, portanto, introduz, nas palavras de Francisco de Oliveira “relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana” (OLIVEIRA, 2003, 60).
Essa convivência entre capitalismo e não-capitalismo é em Francisco de Oliveira, harmônica. O mesmo coloca que o mutirão de construção de casas em bairros de trabalhadores contribuía com o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho, constituindo-se, portanto, em despêndio de supertrabalho, ou seja, trabalho não-pago, aumentando assim, a taxa de exploração da força de trabalho.
Já que estamos falando em controle de meios de produção – algo que cumpre uma função semelhante ao caso descrito por Oliveira, mas possuem naturezas distintas, visto que o mutirão não torna o trabalhador um produtor de casas, enquanto que uma parcela de terra pode torná-lo um produtor de mercadorias – nos ocorre uma pergunta distinta. Não poderia, entretanto, estar constituindo essas alternativas de barateamento do custo de reprodução da força de trabalho realizadas à margem do salariado mesmo do trabalho informal, uma resistência econômica à proletarização? A permanência e a recriação incessante de margens de autonomia na viabilização da sobrevivência dos trabalhadores, no caso rural, não seria uma resistência anti-capitalista ou será somente uma resistência pequeno-burguesa anti-proletarização?
João Edmilson Fabrini destaca que, no caso da classe camponesa é preciso ir além da compreensão restrita do que seriam seus movimentos de classe que vão além dos movimentos sociais institucionalizados. O autor chama atenção para elementos como “produção para auto-consumo, a autonomia e o controle do processo produtivo, a solidariedade, as relações de vizinhança, os vínculos locais” (FABRINI, 2008, 239) todas elas “assentadas no território” num contraponto “à dominação do modo de produção capitalista”. Aqui aparece ao mesmo tempo uma mediação com o capital, visto que o camponês transfere renda da terra para os setores capitalistas na circulação de mercadorias estando, portanto, submisso no campo comercial ao capital. Todavia, no processo produtivo, conservam-se características não-capitalísticas, constituindo-se, portanto, num território à margem do controle do capital que limita-se ao resultado do trabalho e somente influencias, mas não determinando o modo de trabalho.
No caso do semi-camponês ou semi-proletário temos uma condição histórica distinta: estando de certo modo livres do processo de produção de mercadorias e não sendo, portanto, a produção capitalistas agrícola o fulcro da geração de sua subsistência. Nesse caso, a margem de autonomia do trabalhador enquanto camponês torna-se ainda maior visto ser esta atividade complementar. Esse seria o caso do trabalhador assalariado, do proletário agrícola temporário e do trabalhador autônomo que possuem roças com objetivo de reprodução da força de trabalho.
Na medida em que a proletarização é uma tendência inerente ao modo de produção capitalista, a sua negação através da permanência no campo e na insistência do pequeno proprietário em não tornar-se um operário assalariado em tempo integral seria uma resistência? Não necessariamente. O debate teórico a respeito da tendência do capitalismo no campo é diverso, complexo e não há consenso sobre um suposto desaparecimento do campesinato. Não sendo nosso objetivo aprofundar esse debate é suficiente colocar que existem pontos de vista que vão do espectro de uma inevitável transformação do camponês “em proletário rural como nova categoria política” conforme Otávio Ianni (2005), tese bastante semelhante à de Lênin (1982) que previa o desaparecimento dessa classe na Rússia transformada em uma reduzida burguesia agrária, classe média rural e um proletariado agrícola. Friedrich Engels (1977) fez prognóstico semelhante para a Europa Central: “nosso pequeno camponês (...) está irremediavelmente condenado a desaparecer. O pequeno lavrador é o futuro proletário”.
Recusamos a aplicabilidade dessa tese para o caso brasileiro, de antemão, assim como qualquer conclusão apriorística na nossa pesquisa. Não obstante, consideramos extremamente relevantes tais trabalhos e suas diversas discussões para a construção de nosso referencial. Trabalhamos com a hipótese de que há um processo conflituoso de descamponeização e recamponeização de numerosas parcelas da população de regiões agrárias como o nosso caso de análise, a Caatinga de Irecê. Tal processo, longe de representar uma objetiva e abstrata tendência decorrente de uma Lei Econômica é um processo real de conflitos de sujeitos históricos concretos situados em lugares de classe antagônicos que disputam por um lado a sobrevivência, enquanto trabalho – seja através dos salários, da renda da terra ou de ambos – de uns e a sobrevivência enquanto capital – objetivando a acumulação ou ampliação da taxa de mais-valia e da taxa de lucro – de outros. Do ponto de vista dos sujeitos semi-camponeses ou semi-proletários, testaremos em nossa pesquisa a hipótese de que há uma tendência regional à aquisição ou ampliação de micropropriedades com objetivos de “estabilidade financeira” e barateamento dos custos de reprodução da força de trabalho. A tal processo, chamamos de aquisição de margem de autonomia camponesa que pode ser realizada pelo camponês – visto às vezes como pequeno produtor agrícola ou agricultor familiar, denominações mistificadoras e reificadas da realidade – que comercializa parte de sua produção e destina outra parcela para o autoconsumo, seja individualmente ou de forma comunitária, como pelo proletário agrícola que tem uma pequena propriedade e busca tanto no salário de trabalhador temporário ou da renda da terra de pequeno camponês a fonte de sua sobrevivência. A característica de ser um semi-camponês é a fragilidade dessa condição: basta uma crise na lavoura, uma flutuação das condições naturais combinada com uma ampla oferta de empregos em outra região do país tal semi-camponês torna-se suscetível à magnetização. Daí, portanto, sua condição de exército industrial de reserva, um semi-camponês que é um proletário em potencial – mas não um proletário futuro de forma inexorável – e que, mesmo extraindo parte da fonte de sua subsistência à margem do capital, é subordinado às flutuações do mercado e às agruras da produção agrária.
O Caso de Irecê
Entendemos como modernização capitalista o processo de arranjo de relações sociais, econômicas, políticas e ideológicas que ocorreu na Caatinga de Irecê na qual uma reorganização da estrutura agrária com objetivo de aumento de produtividade da produção substituindo uma agricultura de subsistência por uma agricultura mercantil voltada para a acumulação de capital localmente, do ponto de vista dos produtores e, externamente, do ponto de vista de firmas de comercialização dos produtos e de venda de máquinas, adubos, etc. Compõe também essa modernização a adoção de um padrão tecnológico superior de origem externa e a mudança de comportamento do produtor que abandona uma lógica camponesa de subsistência e autoreprodução por uma lógica mercantil de monocultura e concorrencial. Isso é acompanhado da troca de um saber experimental por um conhecimento técnico, erigido discursivamente como superior, neutro e mais eficiente, como também pelo declínio de relações comunitárias que envolvem conflitos e solidariedades características por um novo tipo de relação social, aquela mediada pela posição de classe.
Localizamos o epicentro dessa modernização capitalista em duas fases nos meados do século XX.
1) anos 1950 – Precedida de uma tendência crescente à mecanização e à capitalização da agricultura através do feijão e da mamona, há um recrudescimento nessa prática ao longo da década, prevalecendo, entretanto, fatores endógenos compondo as suas múltiplas causas.
2) anos 1960 – Trata-se de um momento de transformação agrária profunda em virtude da politização da economia promovida pela ação estatal que é marcante e incisiva através do crédito voltado para o tri-consórcio (milho, feijão, mamona) visando a comercialização e a expansão da fronteira agrícola aumentando a demanda por força de trabalho fornecida pelas ondas migratórias originária especialmente em alguns estados do Nordeste – Pernambuco, Ceará, Paraíba, Piauí, Alagoas, etc. Através de uma ação em âmbitos diversos do Estado, estabelece-se um consenso em torno da necessidade de acumulação mediante uma arrojada mecanização e uso de assistência técnica na produção do tri-consórcio de mamona-milho-feijão aliada a uma política generosa de crédito agrícola, assistência técnica e infraestrutura.
A região da Caatinga de Irecê é uma denominação mais ou menos generalizada durante fins do século XIX e primeira parte do século XX para uma região mais ou menos localizada no interior dos antigos municípios de Morro do Chapéu e Xique-Xique e que atualmente correspondem a alguma coisa que inclui os municípios de Irecê, São Gabriel, Central, Presidente Dutra, Lapão, João Dourado, Ibititá, Uibaí. A Caatinga é um território econômico, visto que foi denominado pelos ribeirinhos – da beira de rios, predominantemente pecuaristas e comerciantes – e pelos serranos – com suas atividades garimpeiras – como uma região sem rios de grande porte, sem água, de vegetação caatingueira, temporariamente inviabilizadas para a criação de gado e próprias a atividades agrícolas. Adotamos essa denominação regional tendo a vista o seu significado histórico – ocupada no século XIX por camponeses que buscavam terras agricultáveis – e a falta de correspondência dos limites políticos dos municípios e territórios para os objetivos do nosso estudo. Tem-se em vista, porém, que é uma região agrícola localizada nos municípios supracitados e magnetizada por Irecê atestada por Fernando A. Silva que dizia ser essa cidade vista pela região como um “exemplo de desenvolvimento” que “grande parte da população conhece e admira” (SILVA, 1955, 70).
O Estado Baiano atravessou durante os anos 1950 um período de reordenamento de seu bloco de poder e de sua estrutura econômica. Conforme Guimarães, durante o governo Balbino, sob a gerência de Rômulo Almeida, Secretário da Fazenda, o Estado se constituía uma força autônoma, a partir de um discurso modernizador supostamente “por cima da classes” que fortaleceria sobremaneira a burguesia industrial e agrária, ainda incipiente então. A criação da Comissão de Planejamento Econômico, ao lado do Instituto de Finanças da Bahia e da Universidade da Bahia, darão um escopo técnico e discursivo e a legitimidade científica, portanto, neutra, capaz de mobilizar recursos políticos e econômicos em um arrojado planejamento econômico de modernização baiana e de inserção da Bahia na ordem burguesa, através da formação de uma nova hegemonia no Estado, projeto este coerente com o projeto posto em andamento no plano nacional, ou seja, o projeto desenvolvimentista da burguesia do Sudeste (GUIMARÃES, 1982, 65-66). Tal modernização que, de acordo com Paulo Fábio Dantas (2006) significava não uma rejeição do passado e de sua “gramática política”, no caso, o clientelismo. Pelo contrário, há nesse novo contexto uma combinação aparentemente paradoxal dessa política atrasada com novas gramáticas políticas: corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos.
São apontadas como consequências desse reordenamento de poder estadual – e da fusão de projetos burgueses de ordem estadual e nacional num sentido nitidamente indusrtializante – a atuação do Estado na economia regional de Irecê. Em análises produzidas por agências governamentais, indica-se a substituição de uma agricultura de subsistência por uma agricultura mercantil que fosse capaz de produzir para o mercado interno produtos como “feijão, milho, mandioca e mamona”. A atuação do Estado se daria, de acordo com o mesmo relatório, a partir da “implantação da estrada Ipirá-Xique-Xique”, das ‘modificações ocorridas no sistema de crédito rural”, e da “presença de instituições de apoio ao setor agrícola” (CAR, 2002). De acordo com outro relatório de outra agência governamental – o Centro de Pesquisas e Estudos – o incentivo governamental consistiu em aluguel de tratores por preço acessível, financiamento de aquisição de implementos agrícolas, o incentivo à mecanização da agricultura e a abertura da Carteira Agrícola pelo Banco do Brasil “em 1953 para a concessão de crédito para os proprietários rurais” (CPE, 1994, 22-23). De acordo com a mesma, essa iniciativa parte da Secretaria de Agricultura e da Comissão do Vale do São Francisco. Em suma, a “modernização conservadora da agricultura” (CAR, 2002, 75) é operada pelo Estado.
Porém, se o CPE chama atenção para a “mentalidade inovadora do agricultor local” para, em seguida, destaca a “intervenção estatal”, é preciso considerar que a modernização já se operava em alguma escala desde fins dos anos 1940. Caso contrário, não seria possível a produção de 1.800 toneladas de mamona no ano de 1949 somente em Uibaí e Central, distritos de Xique-Xique no período em questão, mas já magnetizados por Irecê. O destino da mamona era Salvador (SILVA, 1955, 97). Deste modo, fica, ao nosso ver, evidente a necessidade de aprofundar os estudos em relação a esse período para ver se a agricultura mercantil de Irecê é produto de operação estatal como querem afirmar os relatórios de pesquisas de agências governamentais ou se o mesmo recebeu um impulso e uma disciplinarização com a ação estatal, mas que já estava sendo processada uma modernização da agricultura desde os anos 1940 como fruto de desenvolvimento endógeno?
Todavia, se acreditamos que a gênese da agricultura mercantil na região representa uma lacuna, carece também averiguar as características da modernização capitalista e em que momento podemos dizer que já há uma consolidação da agricultura mercantil capitalista. Os trabalhos existentes informam um 1970 como período de estabilização do novo padrão de produção agrária. Os fatores que LÊNIN (1980) considera como fundamentais para a análise do caráter capitalista da agricultura são: superfície, intensidade da produção, tipo de mão-de-obra, adubos, máquinas (inversão de capital), crédito e êxodo rural. Na ausência de dados seriais nas fontes pesquisadas, utilizaremos dados diferentes e uma boa dose de dedução para questionamentos. A descoberta de dados seqüenciais e a crítica sobre a sua correspondência na realidade é uma das metas da pesquisa em andamento. A carência de dados e o estágio em andamento da pesquisa nos limita a não caracterizar alguns desses aspectos a exemplo de intensidade de produção e a lacuna de dados para melhor analisar os demais.
A expansão da superfície é notável. Fernando S. Silva (1955) considerava que um dos fatores que facilitava a pequena propriedade na região próxima a Irecê era o fácil acesso a terras para plantar na região no início dos anos 1950 (SILVA, 1955, 97). Em 1995-1996, nos municípios que consideramos como Caatinga de Irecê (Irecê, Ibititá, Lapão, João Dourado, São Gabriel, Presidente Dutra, Uibaí), existe uma taxa de ocupação do território municipal por estabelecimentos agropecuários de aproximadamente 70 % (CAR, 2002). Em 1980, o território de Irecê, de modo geral, somava 1.195.657 hectares de área ocupada por atividades agrárias (CAR, 2002, 82).
Em 1980, houve cerca de 103.615 de “Pessoal ocupado” na agricultura regional. Destes, cerca de 3.975 eram “empregados permanentes”, sendo que um número de 26.917 se constituía de “temporários”. No mesmo ano, os dados informam que cerca de 71.932 pessoas eram enquadradas enquanto “Responsáveis e membros não-remunerados da família”, denominação extremamente ampla capaz de agregar indiscriminadamente médios e pequenos proprietários com perfil empresarial, a pequena exploração familiar a até mesmo aqueles que possuíam micropropriedades, sem excluir aqueles que participavam paralelamente ao trabalho diário em outras fazendas. Lênin (1980) é categórico ao afirmar que “o emprego de mão-de-obra assalariada é, evidentemente, o indicador mais incontestável e direto do desenvolvimento do capitalismo” (LENIN, 1980, 37). De fato, se considerarmos os municípios com a predominância da agricultura mais mercantilizada, mais mecanizada e mais capitalizada e os compararmos aqueles onde a agricultura é “atrasada”. Irecê, em 1980, por exemplo, empregava 13.919 trabalhadores entre permanentes e temporários, enquanto Xique-Xique, município considerado mais aquém em termos de mecanização da agricultura, só dispunha de 3.509 trabalhadores (CAR, 2002, 90). Uma conclusão a ser retirada é que a agricultura mercantil de Irecê mesmo não eliminando – ao contrário, ampliando – o número de pequenos proprietários ela gerou um mercado de trabalho assalariado muito mais amplo do que em municípios de economia não-capitalista. É preciso, entretanto, considerar que se o número de pequenos proprietários em Irecê aumenta: em 1985, eram 31.655 estabelecimentos, predominando a pequena exploração, havendo mais de 30.075 com tamanho inferior a 100 hectares, sendo que 19.986 são inferiores a 10 hectares. Em 1995, o número cresce para 39.670 estabelecimentos, havendo 38.045 com tamanho inferior a 100 hectares (CAR, 2002, 78). Paralelamente ao crescimento da pequena exploração, tivemos uma redução da grande exploração[1], que em 1985 representava 0,35 % da área agrícola com 111 estabelecimentos e em 1995 ela cai para 0,26 % da área, com 102 estabelecimentos. Todavia, como os dados são para todo o território, não podemos precisar se houve uma fragmentação fundiária generalizada ou se a tendência para o local mais capitalizado é de concentração de terra e a tendência para as regiões não-capitalistas – onde, aliás, predominavam os latifúndios como em Gentio do Ouro, Xique-Xique e Itaguaçú da Bahia – seria de fragmentação. Além disso, é preciso considerar que a capitalização da agricultura não pode basear-se num pressuposto de que há uma grande propriedade. Pelo contrário, Lênin já alertava para o caso da agricultura norte-americana que a “via fundamental do desenvolvimento da agricultura capitalista consiste precisamente em que a pequena exploração, permanecendo pequena pela extensão de terra, transforma-se em grande exploração pelo volume de produção, desenvolviment da pecuária, quantidade de adubos utilizados, desenvolvimento do emprego de máquinas, etc” (LENIN, 1980, 63). Desse modo, não se pode concluir erroneamente que a predominância da pequena propriedade seja consequentemente a hegemonia da produção camponesa familiar.
O critério de mecanização da agricultura se fossemos concluir que quanto mais máquinas, logo, mais capital revela que a concentração de máquinas na região de Irecê é bastante generosa para os defensores da tese de uma agricultura mercantil capitalista. Sua mecanização é precoce: “a área de Irecê se salienta na economia regional não só pelo montante atingido por sua produção agrícola, como também, pelas características que a lavoura aí apresenta, isto é, a mecanização, o que não é comum no sertão baiano” (DUARTE, 1963, 4). Isso por quê a região de Irecê, nos anos 1950, possuía 1,2 % dos tratores e 1,9 % dos arados mecânicos utilizados na Bahia. Esse número sobe vertiginosamente, em 1970, para 22,4 % dos tratores e 23,8 % dos arados mecânicos utilizados no estado. Um reequilíbrio proporcionado pela mecanização em outras regiões faz com que Irecê permaneça ainda com 14,1 % dos tratores e 17,2 % dos arados utilizados na agricultura. São dados que nos indicam uma das agriculturas mais mecanizadas do Estado. Mecanização significa aumento da presença de capital constante na produção e ampliação da composição orgânica do capital.
O estudo do CPE relaciona essa mecanização em particular e a modernização capitalista de um modo geral como um processo que tem como uma de suas causas principais uma oferta abundante de crédito. Carecem as informações a respeito dos anos 50 e 60, período que é de extrema importância para a nossa análise visto ser nesses anos em que se dá o principal do processo de modernização capitalista. Anota-se, porém, que foi através de uma política econômica planejada pelo governo estadual que o setor agrícola foi vinculado ao urbano industrial, visto que o incentivo de crédito destinava-se à produção do tri-consórcio – mamona, feijão e milho –(CAR, 2002, 94) afirmação que é demais simples já que apresenta o capital financeiro direcionado pelo planejamento estatal como agente de modernização capitalista: esquecem-se sujeitos, conflitos e o discurso oficial instaura uma sociedade transformada por um Estado num processo onde estão ausentes projetos alternativos, conflitos de instituições ou de frações de classe ou classe. A lacuna é notável.
Os dados dos anos 70 e 80, entretanto, foram período de gastos generosos. O Banco Interamericano de Desenvolvimento viabiliza US$ 10 milhões de dólares para o Programa de Desenvolvimento Rural Integrado da região de Irecê. O investimento para o período entre 1983, onde o foco é o “produtor rural” – categoria que oculta a condição do que recebe o investimento, se é um agricultor familiar camponês ou um empresário rural capitalista e institui discursivamente uma realidade homogênea e harmônica – e os incentivos voltam-se para aquisição de tratores e material para irrigação. A soma do período 1983-1992 é de US$ 266 milhões (CPE, 1994, 39-41). Temos, portanto, a presença de crédito rural como fator importante na modernização capitalista, mas questiona-se até que ponto ele foi decisivo e quais as razões políticas que levam à aplicação desse crédito via Estado justamente na região de Irecê?
Em relação ao êxodo rural, temos um processo interessante na região. Quando a modernização se acentua nos anos 1960 e 1970, a atração de migrantes em busca de ocupação temporária ou permanente e a fixação de importante parcela dessa população originária, sobretudo, de estados do Nordeste da Federação, notadamente, Pernambuco, Paraíba, Piauí, Sergipe, Alagoas. A atração e fixação dessas famílias é tão importante que ela configura de modo completamente diferente as relações sociais, culturais e políticas das comunidades da região e instituí novas identidades já que os nortistas opõem-se aos nativos de famílias tradicionais da região como a família Dourado, Machado, Rocha, Pereira, Carvalho, etc. Os dados são notáveis: a população da região de Irecê cresce em ritmo acelerado: na década de 1960/70, enquanto a Bahia apresenta um índice de crescimento da população total de 2,3% o índice da região de Irecê é de 4,3%. Na década de 1970/80, todavia, há uma inversão e a região tem a taxa reduzida para 2,2%, enquanto que o Estado mantém-se estável com 2,4%. Tal decréscimo pode ter como uma de suas causas a seca de 1976 que castigou a região e expulsaram amplas parcelas da população, notadamente, aquelas mais frágeis economicamente, ou seja, as não-proprietárias ou as que possuíam roças pequenas ou em lugares com reduzida renda da terra. Porém, a manutenção da queda da população em 1980/1990 que apresenta uma redução para 1,9% acompanhando a tendência de redução da taxa que no Estado é de 2 %. A incapacidade de parte dessa população de adquirir ou mesmo permanecer na terra e a predominância da pequena propriedade – camponesa ou capitalista – e do trabalho temporário sobre a oferta de emprego permanente tornam a parte da população mais desfavorecida – a não-proprietária ou a numerosa família microproprietária – facilmente atraída para o magneto do crescimento econômico urbano-industrial. Seria necessário a disposição de informações sobre a saída de migrantes, sobretudo, para o centro-sul do país e quem compunha essa parcela da população para se analisar com maior precisão quais as razões para esse êxodo. Analisar, entretanto, aqueles que permaneceram é mais fácil.
A reação popular
Caso concordemos com Lênin para o qual o “desenvolvimento do capitalismo na agricultura consiste, acima de tudo, na passagem da agricultura natural à agricultura mercantil” (LÊNIN, 1980, 69), teríamos elementos que indicam para a hegemonia capitalista na região de Irecê. Todavia, há lacunas gigantescas em termos de dados e, sobretudo, análises científicas[2] capazes de ir além do discurso que institui uma realidade homogênea, harmônica e sem contradições de classe a respeito das transformações fundiárias, da composição da força de trabalho e das condições em que a mesma vive, seja através do salariado, da pequena produção camponesa ou mercantil ou da combinação entre essas, das características classistas dessa modernização, dos projetos políticos que estavam concatenados aos momentos de retração e liberação de crédito e outros incentivos à produção, como também se houve um processo de proletarização do campesinato regional.
Resta, por fim, salientar que combinada ou não a uma possível resistência na terra através daquilo que chamaremos de margem de autonomia camponesa há um processo de luta simbólica de setores da classe trabalhadora que é crítico ao processo de modernização.
Elementos diversos podem ser levantados e somente uma pesquisa mais aprofundada será capaz de ordená-los, reestabelecendo o mosaico que compunham no real através da rede capilar de representantes – emissores dos discursos – e representados – autodeclarados ou anunciados. Poderíamos levantar aqui alguns: em “O Manifesto da Tendência Popular do PMDB”, apreendemos uma crítica à política do prefeito de Presidente Dutra, acusado de baixar o “nível da educação”, fechamento da residência dos estudantes do município em Salvador, “perseguição política”, e por contratar professores por “apadrinhamento político” (BARBOSA, 1986). Um dos autores, Erito Barbosa, alguns anos depois, acreditando num “partido pequeno e de lutas por um futuro melhor”, organiza no município o Partido Comunista do Brasil, através do qual sai candidato a vereador em 1988. O mesmo é um aliado dos trabalhadores, ao lado dos quais “sempre esteve”, inclusive, “defendeu frente de serviço para diminuir o sofrimento do povo no período de estiagem”, como também envolveu-se na luta pelo cumprimento do salário mínimo vigente no país que não era respeitado regionalmente. Entre suas propostas, nota-se claramente uma crítica ao processo modernizante: “Defender os interesses dos trabalhadores da cidade e do campo por melhores condições de vida, melhores salários e condições de trabalho” acompanhada da luta por uma “frente de serviço no campo” dirigida por uma “comissão formada pelo próprio povo”, “sem discriminação de sexo, raça ou idade”. Barbosa é técnico agrícola e propunha também a luta “por melhores condições de crédito, efetiva assistência técnica e garantira de comercialização” para os “pequenos e médios produtores”. Além disso, propôs “lutar para que a mamona seja moída aqui e que nós mesmos possamos vender o óleo e o adubo por um preço que valha a pena” fazendo o mesmo com “milho, feijão e frutos”, visto ser necessário para “sair desse caos em que nos encontramos”. A crítica vai além e combate o “desmatamento exagerado” (BARBOSA, 1988). Logo, percebemos o desalinhamento do discurso de Barbosa e sua crítica às consequências da modernização capitalista – desmatamento, desigualdade de classes, opressão – embora não está presente em Barbosa nenhum elemento de valorização do passado.
A presença de militantes políticos com Barbosa em Presidente Dutra, como João Purcino Pereira em São Gabriel e outros são bastante indicativos de que um setor da população estava insatisfeito com os rumos da modernização. Seria esse grupo de filiação ideológica estrangeira e as condições do processo de modernização não criaram nenhum tipo de resistência original, visto que há nos intelectuais que teoricamente estariam vinculados a parcelas da população insatisfeita e que arcou com os prejuízos da modernização capitalista? Ou, ao contrário, estaria esse grupo simplesmente representando intelectual e politicamente uma parcela da classe trabalhadora que saiu perdendo com a proletarização modernizante e lhes servia de referência na construção de uma contra-hegemonia à sufocante modernização?
Pesquisaremos os vínculos existentes entre esses intelectuais e políticos e as camadas trabalhadoras, levando em conta que havia, paralelo à luta política uma politização da economia no sentido de que a permanência na terra pelo camponês é um conflito de classe. Não nos deteremos somente com os representantes políticos: queremos alçar nosso foco de pesquisa na literatura saudosista romântica que instaura discursivamente um mundo idealizado que pertence ao passado pré-modernização capitalista. Fala-se de uma “economia ecologicamente sustentável” no passado pré-capitalista (MACHADO, 2004, 49), narra-se a história quase “épica” do “Patriarca” Venceslau, da família dos Rocha, Machado e Pereira numa “terra de abundância” (ROCHA; MACHADO, 1988, 51). Não faltam exemplos de anti-modernismo e de saudosismo na literatura regional. Essa idealização do passado que se assemelha àquilo que Michel Löwy chama de romantismo anti-capitalista é abundante sendo característica de regiões que passam por um processo de modernização capitalista e que trocam um mundo . Todavia, o saudosismo literário instaura através de seu discurso um real reificado, de abundância, exceto quando a natureza castigava os homens, de solidariedade, exceto em momentos de lutas entre chefes, de valores baseados na oralidade e nas qualidades em oposição à cultura escrita da burocracia estatal e seus papéis e aos valores quantitativos da sociedade capitalista (LÖWY, 1998). Estaria esse saudosismo literário na busca de construção simbólica de uma referência anti-modernista? Qual a ligação desse movimento cultural anti-modernista ou talvez até romântico anti-capitalista com as forças políticas que se propunham representar e organizar a classe trabalhadora?
Seria essa literatura anti-modernista ou anti-capitalista? Ela correspondia aos sentimentos de uma fração da classe trabalhadora que perdeu com o processo de modernização capitalista? Queremos identificar a capilaridade que esse discurso anti-modernista possuía na sociedade, como também checar se o mesmo pode ser considerado anticapitalista de acordo com as características do capitalismo na região.
Podemos falar em resistência à ação estatal? Primeiro, não devemos confundir resistência anticapitalista no terreno a luta agrária com re-ação política partidária ao regime de exceção instaurada em 1964. iniciativas como o Grupo dos Onze e a Guerrilha de Buriti Cristalino de Lamarca não podem ser configuradas com reações camponesas antimodernizantes. Tratam-se na verdade de acontecimentos que apresentam mais causas exógenas que endógenas e estas estariam em ordem distinta a algum anti-modernismo camponês.
Focalizaremos as reações que acontecem nos terrenos da forma de produção econômica e da produção simbólica de valores que correspondem a projetos sociais distintos – talvez um camponês e um capitalista? – e pretendemos avançar na pesquisa para aprofundamento do conhecimento das disputas em torno da renda da terra transformada profundamente pela modernização capitalista e os sentidos que estão intricados nesses projetos de classe em disputa que objetivaram, a seu tempo, instituir o real através da luta pelo consenso objetivando a hegemonia social.
Referências
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[1] O que chamamos de grande exploração na estrutura fundiária de Irecê correspondem a estabelecimentos com mais de 1.000 hectares
[2] Os estudos de agências governamentais objetivam “sustentar um metadiscurso a respeito de todos os outros discursos (...) quando se trata, numa palavra, de se situar meta, acima de, unicamente pela força do discurso, é-se tentado a fazer uso da ciência das estratégias que os diferentes actores aplicam, a fim de fazerem triunfar a sua ‘verdade’ para dizer a verdade do jogo, e para triunfarem assim no jogo” (BOURDIEU, 2007, 57)