De forma particularmente diversa do cinema tradicional (ficção), a cinegrafia do filme documentário é uma estrutura pensada no mise en scène. Essa concepção prévia notadamente tem sua execução e organização na montagem, processo que ordena as cenas e todo o material gravado de acordo com um roteiro, neste, estão descritas as estratégias, as formas de construir um sentido para o documentário e principalmente como esse sentido afetará o espectador. Augusto nos fornece uma descrição objetiva da importância da montagem no cinema
No decorrer de sua existência, a montagem passou a ser organizada como profissão e tornou-se uma atividade técnica responsável pela capacidade inventiva do realizador, produzindo no cinema o movimento vibratório dos signos capaz de lhe fornecer força poética. (AUGUSTO, 2004, p. 54)
A montagem é de extrema importância no nosso caso específico do filme documentário de Reizinho “Do Buriti a Pintada: Lamarca e Zequinha na Bahia”. Por que é uma narrativa fílmica que não está imbricada aos termos da ficção cinematográfica, como atores, falas, adaptações (o que costuma ser característica de documentários históricos) as sequências são formadas por relatos factuais de pessoas envolvidas na história, sem interpretação. O dever de narrar, de conduzir o espectador sob uma determinada perspectiva fica totalmente a cargo da ordenação do roteiro que direciona a montagem.
Primeiro precisamos ter em mente que este texto tem como intuito fazer uma observação da estética do documentário de Reizinho sem se espraiar pelo terreno Histórico que o norteou. Pretendo traçar um comentário breve sobre alguns aspectos mais representativos que transparecem no filme documentário sob uma visão crítica/estética.
De fato, o filme documentário que abordamos aqui conta uma história trágica. No entanto não entendamos aqui o vocábulo “trágico” como no seu uso corrente, banalizado. Resgatamos aqui o termo trágico como conceito. Conceito muito discutido por filósofos e intelectuais desde o início do século XX e que advém da antiguidade clássica. De início seria de bom grado expor o que legitima esse tipo de visão, ou antes, o que há no objeto analisado que garanta a interpretação como trágico.
Para me utilizar de um exemplo de grande pertinência avanço aqui até o instante em que “recortes” de cartas de Carlos Lamarca são lidas pelo narrador em off, em determinada carta diz o capitão: “Nunca terei mobilidade, é a verdade, a minha será dada pelas minhas forças sobre os aviões e helicópteros. Não me iludo mais, a minha prática exige sacrifícios para os quais não espero compreensão paternalista nem comiseração. A revolução me exige isto, e eu quero fazer a revolução!”. Essa expressão, juntamente com outras características da história contada e principalmente como ela é abordada esteticamente pelo filme documentário nos permite caracterizar e estética trágica do mesmo. Na fala de Lamarca está presente um detalhe descoberto pelo filósofo espanhol, Miguel Unamuno. No seu livro “Del sentimento trágico de la vida en los hombres y em los pueblos” ele descobriu que, em termos objetivos, a única delimitação do Sujeito era a imortalidade. Ações como a de Carlos Lamarca e Zequinha Barreto contadas no filme documentário demonstram a extremidade dessa delimitação, a tragicidade concernente à sua atividade revolucionária. Não é atoa que Os Anarquistas espanhóis chamaram em 1909, uma semana de violência extremada e mortes durante levantes sem nenhuma esperança concreta de vitória de “la semana trágica”. Não falavam senão disto, de uma esperança de que um dia as suas atitudes individuais ecoassem na redenção de uma revolução social.
Ações inexitosas que mantém no seu próprio cerne o signo de uma consciência de fatalidade demonstram também determinadas características da tragédia teorizada por Nietzshe, como vemos na afirmação a seguir
a forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou o fato de alcançar a vitória na derrota. A cada vez, o indivíduo é derrotado: e, apesar disso, percebemos seu aniquilamento como uma vitória. Para o herói trágico, é necessário sucumbir por aquilo que ele deve vencer. Nesse grave confronto, intuímos algo da já aludida estima suprema da individuação: aquela de que um originário precisa para alcançar seu último objetivo de prazer. De modo que o perecer se revela tão digno e respeitável quanto o nascer, e de modo que o nascimento deve cumprir, ao perecer, a missão que lhe é imposta como indivíduo. (NIETZSCHE, 2005, p. 12)
No entanto, mais do que os próprios constituintes “trágicos” que permeiam a própria história contada no filme documentário o que mais nos importa são os meios utilizados para criar uma estética da tragédia, numa narrativa singular como a dessa obra fílmica específica.
O Título encerra com efeito uma ideia de trajeto “Do Buriti a Pintada” o que poderíamos entender como “via trágica”, caminho de desterro e conflito. A imagem inicial que inscreve identidade ao projeto, ou seja, a titular também representa um elemento crucial da “tragédia de ser mortal”. A fotografia de Zequinha e Lamarca mortos em direções opostas, enquanto se inscreve abaixo em letras vermelho-sangue seu trajeto instituído “De Buriti a Pintada”.
Os pontos de maior tensão na estética do filme documentário são indubitavelmente as recortes de entrevistas com o pai de Zequinha Barreto, que com uma força emocional hercúlea descreve momentos de terror e abalo sentimental. São os pontos mais emocionantes e que diria, expõem mais efetivamente o espectador ao efeito da catarse. Uma cena delimita a transição entre o centro da história (concatenação dos fatos e acontecimentos que levaram à fuga de Zequinha e Lamarca) e o final do trajeto: Pintada. Nela o pai de Zequinha conta sobre a fuga dos dois, segundo ele diz Lamarca “ José, eu estou morto, me deixe aí numa encruzilhada dessas e procura fugir para salvar tua vida”, responde José “se somos amigos na vida, seremos também na morte, temos que morrer junto... temos que morrer junto”, nesse ponto há um efeito de escurecimento (fade to Black) e a próxima cena é uma visão aérea (sonoramente sinistra) do povoado de Pintada.
A narrativa do documentário no coloca que a situação em que se encontraram Zequinha e Lamarca foi causada por um erro, erro em permanecer ainda que consciente do perigo iminente. Segundo Melo e Souza
“o herói cai em desgraça, por que comete um erro (hemartia) [...] Esta concepção de erro trágico decorre do ensinamento de Sócrates, segundo o qual o homem era por ignorância. A catarse seria, pura e simplesmente, a purgação da ignorância, a passagem da obscuridade para o ilumínio do reconhecimento (anagnorisis).” (MELO E SOUZA, p.122, 2001)
Sabemos, porém, que não está encoberto nessa concepção a natureza do erro dos revolucionários Zequinha e Lamarca, eles não se delineavam pela ignorância, muito pelo contrário, tinham plena consciência de todos os fatos e o seu erro se demonstra mais como uma atitude definitiva de resistência, uma resolução a despeito da sua própria contradição intrínseca que os estreitava racionalmente entre a vida e a morte. O que tem mais relação com o arremate de Melo e Souza sobre a questão do erro e do saber
Contudo, o trágico da tragédia [...] é principalmente ontológico, e não meramente epistemológico. A tragédia não resulta apenas da carência do saber, mas, sobretudo, da excessividade do próprio ser humano.[...] O contorno essencial do horizonte vital do herói trágico se lhe apresenta mais como convite a superá-lo do que como acicate da advertência ou temerosa reverência. [...] Experimentando a transcensão de todo e qualquer caminho, aviando-se impavidamente para toda parte e por lugar nenhum [...] tragicamente educado (ele) realiza a perigosa travessia da insondável limiaridade em que se atualiza a terrível possibilidade de excursão rumo à inexorável vereda do nada.” (MELO E SOUZA, p.122, 2001)
A vereda última é o final do trajeto como expressa o título. Em Pintada foram mortos os dois e levados para Buriti onde, conta um dos entrevistados foram expostos como uma grande conquista e sob o discurso de que aquilo era o que acontecia à terroristas e subversivos. A cena de finalização, de acabamento da vertiginosa via trágica é do que, antiteticamente, poderíamos chamar de uma “beleza terrível”, pois é, em si mesma, uma antítese. Logo após a entrevista com um morador de Buriti que relata a exposições dos corpos de Zequinha e Lamarca ao fundo já começa sutilmente a tocar uma canção que chega no seu ápice quando a cena corta para a focalização mórbida dos cadáveres sob a ironia sonora de “Amada amante” de Roberto Carlos. No entanto o autor não permitiu que fosse a antítese que finalizasse sua obra e na letra da música que conclui o documentário está ainda uma vez expressa assimilação, própria da catarse trágica, do efeito estético da obra de arte: “tombando com tiros no peito, Zequinha não ergueu a voz e agora....... Zequinha virou nós!”.
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