23 de dez. de 2011

CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE DA NOVA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL NO MUNICÍPIO DE UIBAÍ

“Éramos poetas, loucos, místicos

éramos tudo que não era são

agora são com dados estatísticos

os cientistas que nos dão razão

de que valeu aquela máxima lógica

do máximo consumo de hoje em dia

uma bárbara marcha tecnológica

e a fé cega em tecnologia

há só um sentimento que é de dó e de malogro” (Lenine)

Fundamentos metodológicos da questão ambiental

A crítica moderna da questão ambiental nasceu articulada à crítica social do modo capitalista de produção. Desde muito antes de Marx, que dizia que o capital “exaure as fontes de riqueza: a terra e o trabalho” em nome do lucro privado, já se fazia a crítica da impossibilidade de um desenvolvimento econômico – na verdade, uma palavra bonita para disfarça o crescimento destrutivo do lucro capitalista. Foram os socialistas os primeiros a falarem da impossibilidade de acumulação ilimitada. Mas sua divulgação mais notória veio do pastor Malthus, que, a partir da tese de que “a população pressiona os meios de subsistência”, reclamava o controle de natalidade dos pobres, responsáveis pela escassez de alimentos, pelo excesso populacional e pela destruição dos recursos naturais – naquela época não se falava em ecologia ou meio ambiente. Seus críticos, porém, desfizeram essa ilusão: não era o excesso demográfico que causava a escassez de alimentos ou a destruição ambiental. Ao contrário, o baixo consumo dos pobres os isentava disso. O que causava o problema era uma economia que privilegiava o lucro e não a distribuição racional e igualitária dos bens de consumo.

Duzentos anos se passaram e o malthussianismo continua com seus adeptos que apresentam a seguinte argumentação (aqui resumida de forma grosseira): com sete bilhões de habitantes no globo, precisamos repensar nossa forma de produção e consumo. A conclusão geralmente é: racionalizar os recursos naturais, reciclar, economizar água, energia, alimentos, etc. No Brasil, devido aos altos níveis de desenvolvimento econômico dos últimos anos, foi bastante comum responsabilizar os pobres que melhoraram seu padrão de consumo (os tais novos membros da classe média) pelos excessos na destruição ambiental, já que, recentemente premidos pela pobreza, agora que desafogavam sua barriga, esses novos consumidores tinham um voraz apetite de consumo, indiretamente, destruindo os recursos naturais. Também não foi raro imputar aos chineses a destruição ambiental, afinal, o crescimento da econômica naquele país permitiu melhorias no padrão de consumo que levaram milhões de chineses a terem o direito de comer carne, levando às florestas à devastação para a pecuária. Tal crítica é despolitizada, classista e não tem compromisso com a totalidade.

O filósofo húngaro István Mészáros em seu livro Para além do capital, coloca que a humanidade está diante de uma encruzilhada histórica em que há duas opções: a sociedade civil autoregulada, igualitária e racional; e o atual modelo capitalista, destrutivo, incontrolável, irracional e bárbaro, que ameaça destruir a possibilidade de vida humana no planeta. O autor demonstra que o problema ambiental que assola o mundo inteiro foi causado pelo modo de produção capitalista. Combatendo as teses neomalthusianas, o autor prova que a obsolescência, a produção de valores de troca sem valor de uso, o desperdício e o nível irracional de consumo dos países do centro do capital está comprometendo nossos recursos naturais. Afinal de contas, é ilógico que um país (os Estados Unidos) com 2% da população do planeta consuma 25% dos recursos disponíveis. Isso se reproduz nas outras esferas sociais: desse modo, no menor povoado de Uibaí, as poucas cabeças de gado que fazem a floresta dar lugar ao pasto e produzem gases poluentes e causadores do aquecimento global, os que mais se beneficiam de seu leite e apreciam sua carne são meia dúzia de remediados e pequenos ricos, enquanto centenas de pessoas trabalhadoras vivem um reduzido padrão de consumo.

Desse modo, não podemos dissociar a questão ambiental da questão política e da questão social. Um novo modo de produção que privilegie a conservação dos recursos ambientais, a justiça social, a igualdade e solidariedade exigirá a derrubada política e social do modo de produção capitalista. Sem essa premissa histórica, ficam comprometidas as possibilidades de mudança qualitativa da sociedade e as iniciativas de conservação ambiental se transformaram em ilhas isoladas cercadas por desertos em todos os lados, o que não deixa de significar bastante para aqueles que resistem e não deixam de ter seu mérito e de serem dignas de nosso louvor.

Na região de Irecê, percebemos que a destruição ambiental está associada ao desenvolvimento econômico capitalista. No século XIX, houve uma grande queimada que durou semanas na Serra Azul, no topo da serra próximo às nascentes dos riachos do Gasta-Sabão, do Olho d’Água, da grota do Jatobá e do Guigó. Esse incêndio, de causa acidental, devastou vários quilômetros quadrados de caatinga. Na regeneração de áreas queimadas na nossa serra, a maniçoba exerce um papel importante: ela domina as novas matas que se formam após as queimadas, talvez pela resistência de suas sementes, as patacas. Quando a indústria alemã e norte-americana passaram a demandar grandes quantidades de borracha, o Brasil se tornou, a princípio, o maior exportador de borracha de seringueira e de borracha de mangaba e maniçoba (que representa 75% do valor daquela). As matas de maniçoba da Serra Azul foram invadidas por multidões de forasteiros e mesmo pelos moradores mais antigos da região, já que a extração de borracha se tornou um negócio lucrativo. A violência, a carência de gêneros alimentícios foram bem narrados por Osvaldo Alencar e Edimário Machado no penúltimo capítulo de Canabrava do Gonçalo. Logo os maniçobeiros descobriram o “método de plantio” da queimada e passaram a “cultivar” maniçoba por toda a região da Serra Azul, do topo das serras até as regiões baixas. Alguns recorreram ao plantio de estacas, mas a maioria simplesmente ateava fogo à mata, pois, a maniçoba dominava naturalmente a área queimada. Essas histórias, narradas pelo cientista suíço Leo Zehntner que esteve presente na região, diretor do Instituto Agrícola, criado pelo então governador da Bahia, Miguel Calmon, mostram que a produção de borracha para o mercado internacional foi a primeira grande devastação ambiental da Serra Azul e da nossa região.

Os camponeses que se estabeleceram na caatinga desde a primeira metade do século XIX desevolveram uma produção agrocaatingueira. Não possuíam técnicas de melhoria do solo, nem adubos ou mesmo preocupação ambiental. Mas, por necessitarem dos recursos florestais da caatinga para pasto, madeira, frutas, remédios, fibras, mel e caça, os camponeses da região conservaram grandes regiões de reserva florestal de caatinga, geralmente de uso coletivo. A água, conforme o estudo Um flagelo no sertão baiano: cotidiano, migração e sobrevivência na seca de 1932 (Vila de Canabrava do Gonçalo/Xique-Xique, BA) de Daiane Dantas Martins, era de uso coletivo e por mais que a seca trouxesse à tona conflitos e contradições existentes nessa sociedade camponesa, não eram incomuns as manifestações de solidariedade, mesmo num episódio de grande escassez de alimentos. Essa agrocaatinga, baseada na pecuária extensiva, na policultura, na múltipla especialidade profissional, na comercialização de excedente e na solidariedade camponesa, marcadamente bairrista e familiar, com uso coletivo de recursos e preservação de uma reserva florestal, não resistiu ao avanço do capitalismo na região a partir dos anos 1940.

O advento das culturas comerciais de algodão, mamona, feijão e milho aceleraram o processo de destruição da caatinga. Porém, somente com a mecanização, a assistência técnica e o crédito promovidos pelo Estado é que o capitalismo encontrou as condições ideiais de desenvolvimento na região de Irecê. Uma série de estudos mostra que foi o tri-consórcio milho-feijão-mamona, e as políticas de crédito do governo com slogans como “o Brasil cresce e Irecê abastece”, “Plante que o governo garante” e “terra do feijão” que destruíram a economia regional pré-existente e criaram em seu lugar, uma econômica capitalista agrária em que o agricultor era explorado indiretamente através dos impostos pelo Estado, dos preços pelo capitalista atravessador e dos juros pelo capital bancário. John Wilkinson (Estado, agroindústria e a pequena produção) e Sônia Leão (Irecê: a formação de um ‘subsistema’ urbano) estudaram esse momento que abrange as décadas de 1950-1970 que transformaram a região no maior produtor de grãos do Nordeste, na possuidora de um quarto das máquinas agrícolas do Estado e num processo de núcleo que sofria urbanização acelerada com graves problemas sociais. O Estado subvencionou a destruição da agrocaatinga permitindo a ação do capital. Porém, quando o desenvolvimento dos transportes e das redes rodoviárias tornou outras regiões no Oeste baiano mais interessantes para a exploração capitalista da agricultura, a região de Irecê foi abandonada. O espaço já estava aberto para o desenvolvimento de uma olericultura e fruticultura irrigadas baseadas em explorações intensivas que disfarçam de “pequenos produtores” uma burguesa agrária e comercial na região. Os impactos desses fenômenos foram estudados com profundidade por Arlicélio de Queiróz Paiva no estudo Solos carbonático-fostáticos do platô de Irecê, BA: gênese, mineralogia e geoquímica.

Percebemos, portanto, que não há possibilidade de dissociar a questão ambiental da política e da econômica. Sem uma mudança de modelo de desenvolvimento, não é possível pensar em uma sustentabilidade ambiental que seja social e politicamente sustentável. O novo contexto que estamos prestes a enfrentar é de exploração mineral por grandes empresas – uma expansão e diversificação de atividades com a exploração de fosfato pela Galvani – e da luta pela terra em torno dos aforamentos das áreas utilizadas para energia eólica. É nesse novo cenário que foi aprovado em fevereiro de 2011 o Código de Defesa do Meio Ambiente, projeto de autoria da Prefeitura Municipal de Uibaí e aprovado com unanimidade pela Câmara Municipal. Em que consiste o código? Quais recursos estão em disputa? Que interesses estão por trás disso?

A quem interessa o código?

Supostamente “fundamentado no interesse local”, a proposta do Código Ambiental, um documento de 20 páginas e 114 artigos, prevê a criação de uma política municipal de meio ambiente voltada para “preservação, conservação, defesa, melhoria, recuperação e controle do meio ambiente ecologicamente equilibrado” (art. 1º). Tendo por objetivos além dos quixotescos “desenvolvimento integral do ser humano”, a Política prevê “articular e integrar” as ações ambientais da prefeitura, Estado e Federação, “identificar e caracterizar os ecossistemas do Município” e “estimular o desenvolvimento de pesquisas” (art. 3º). Também prevê a criação do Conselho Municipal do Meio Ambiente e da Secretaria de Meio Ambiente e Turismo (art. 6º).

A criação de nova estrutura burocrática – ou, talvez a re-formulação de uma pré-existente através da elevação de uma diretoria de meio ambiente que poderia existir numa Secretaria de Agricultura – demanda recursos públicos que sairão do orçamento municipal. Todavia, os gastos previstos não se resumem na contratação de um novo secretário, um ou dois auxiliares, um computador e no aluguel de um espaço de algum correligionário. Tais despesas por si só já seriam altas considerando os limites do orçamento municipal. Na última vez que o Movimento Vicente Veloso sentou para discutir a proposta de Lei orçamentária anual, a de 2009, já questionávamos se era possível uma política agrícola com base num orçamento “para a agricultura” que representava 1% do total, algo em torno de R$ 100.000,00 para a agricultura. Considerando que um secretário receba R$ 4.000,00, seu rendimento anual representa quase metade da despesa prevista. De onde sairia o dinheiro para uma Secretaria de Meio Ambiente, considerando que esta é a separação de um departamento da Secretaria da Agricultura?

Porém, o código prevê muito mais que um secretário (nos cálculos acima, sem nenhum auxiliar). No capítulo III, o município se responsabiliza pela realização de um “Zoneamento ambiental” que consiste em classificar as áreas do município em “Zonas de Unidade de Conservação”, “Zonas de Proteção Ambiental”, “Zonas de Proteção Paisagística”, “Zonas de recuperação ambiental” e “Zonas de controle especial” (art. 14º). As unidades de conservação podem ser enquadradas nas categorias de “reserva ecológica” destinada exclusivamente à preservação e pesquisa científica; as de “relevante interesse ecológico” que exigem “proteção especial”, as “reservas de desenvolvimento sustentável” onde vivem povos tradicionais como quilombolas, camponeses ou indígenas que prevê equilíbrio entre proteção e produção e as de “parque municipal”, “jardim botânico”, “horto florestal” e “jardim zoológico” (art. 18º). Toda essa classificação e posterior regulamentação exigirá muito mais do que um Secretário e dois ou três auxiliares. Trata-se de um estudo de envergadura, jamais realizado na região que deverá ser realizado por uma equipe multidisciplinar que inclua biólogos, agrônomos, engenheiros ambientais, geólogos, geógrafos, antropólogos, etc. Posteriormente, haverá uma normatização e regulamentação que exigirá um aparato burocrático relativamente preparado e uma assessoria jurídica competente o bastante para compatibilizar as legislações federais e estadual com a municipal. Será que o município possuirá condições, em um orçamento tão minguado, de realizar uma empreitada dessa, haja vista que todos esses profissionais deverão ter o mínimo de conhecimento dos biomas existentes na região – predominantemente na caatinga – e que, por sua alta qualificação e raridade, custarão talvez o mesmo ou mais do que o tal secretário?

Ora, poderia responder alguém que o município só precisará realizar tal zoneamento ambiental uma vez. Para ser mais responsável, deverá fazer revisões periódicas, talvez num intervalo de uma década. Seria um gasto alto, mas excepcional. Porém, sabemos que o código prevê, no seu capítulo VI, a realização do “licenciamento ambiental” para empreendedores que pretendam realizar alguma atividade “potencialmente degradadora” (art. 28º). Por exemplo: se alguém quiser explorar areia para construção, precisará de “Licença de localização” que prevê “requisitos básicos e condicionantes” do atendimento de “programas e projetos” com validade de dois anos; a seguir, o empreendedor solicitará da Secretaria e do Conselho municipais de Meio ambiente a expedição de uma “licença de implantação” e a seguir uma “licença de operação” após a avaliação do “efetivo cumprimento das exigências constantes das licenças anteriores” (art. 30º). O código prevê, portanto, uma equipe numerosa e qualificada para atuar junto à Secretaria e Conselho municipais do Meio Ambiente. Questiona-se: o município terá condições de arcar com tais procedimentos e contratar e dar condições de trabalho a profissionais desse tipo?

Não questionamos aqui nenhum dos procedimentos previstos na lei (o que poderia ser feito por alguém com mais competência no assunto), nem sua consitucionalidade, mas pergunta-se sobre sua viabilidade. Considerando que nos últimos anos as dificuldades de fiscalização e controle ambiental no Brasil possibilitaram uma situação de anarquia generalizada e na permissão de uma série de crimes ambientais realizados à luz do dia sem sequer denúncias ou imputação de crime.

Assistimos cotidianamente na nossa região a retirada de madeira, a extração de areia, a instalação de empreendimentos turísticos sem qualquer tipo de regulamentação ou licenciamento, incêndios criminosos, destruição de nascentes, poluição de águas, retirada indiscrimada de água do subsolo (responsável pela morte do riacho do Baixão), poluição do ar urbano com fábricas que emitem fumaça e gases poluentes na cidade causando doenças nos moradores das imediações, tudo isso sem qualquer imputação legal ou criminal. Não é cedo que chega a possibilidade de uma legislação que venha regulamentar as atividades econômicas e permitir algum tipo de proteção ambiental. Qualquer iniciativa legal ou não que venha garantir algum tipo de preservação, recuperação e proteção ambiental é bem-vinda. Mas ela precisa ser viável e realista.

Não teria sido essa lei uma transferência de uma responsabilidade da esfera estadual para a municipal, haja vista que aquela tem tido dificuldades para zonear e licenciar os empreendimentos de potencial degradador no Estado? Essa transferência de responsabilidade para a esfera municipal tem a vantagem de favorecer a participação cidadã na gestão ambiental no cotidiano do município, permitindo mesmo um controle direto. Porém, a incapacidade que essa esfera administrativa tem de executar ações tão vultosas pode, por outro lado, favorecer a legalização de empreendimentos de grande porte como mineração, geração de energia ou outros tipos de extrativismo.

Se o município tem condições de realizar e implementar tal Código, porque diversas iniciativas como abertura de estradas em regiões de encostas e de nascentes de riachos foram feitas “ao arrepio da lei”? O código prevê 180 dias para regulamentação “mediante decreto” do prefeito (art. 110º) e certamente o orçamento anual de 2012, proposto pelo executivo e discutido e aprovado pela Câmara ainda em fins de 2011 prevê recursos para a execução dessa lei. Como está a sua aplicação? O que tem sido feito? O debate ambiental não pode ser realizado à revelia do Executivo e do Legislativo, além, é claro, do Ministério Público.

Devemos questionar se é melhor e mais interessante para o movimento ambientalista e para a sociedade regional a reivindicação de uma participação do Estado da Bahia no zoneamento e no licenciamento ambiental através da criação de agências regionais e conselhos territoriais da Secretaria Estadual de Meio Ambiente ou se é possível que um município pobre em arrecadação pode realizar tal atividade com responsabilidade e qualificação técnica? Não podemos nos deixar enganar pela poesia do texto jurídico, nem pelo legalismo daqueles que resumem as questões ambientais a uma tecnologia jurídica que deve ser aplicada corretamente. Tais decisões e discussões são políticas no sentido de que devem interessar e envolver os cidadãos e a sociedade civil.

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