A escravidão faz parte de nosso passado de uma forma tão cruel que ainda hoje não nos livramos dela. Não é possível entender nenhum problema social do país (pobreza, criminalidade, favelas, racismo, terrorismo de Estado) sem entender o quanto a escravidão ainda está presente como um fantasma que assombra.
Ao contrário do que deixa entender Osvaldo Alencar em seu livro Canabrava do Gonçalo[1], quando diz que a abolição não foi notada visto que “não havia escravos no lugarejo (Canabrava)” a escravidão estava presente na nossa terra. Osvaldo não diz que não houve escravidão, mas faz um silencio sobre a questão. Demonstraremos, através de informações colhidas no próprio livro que a escravidão está indissoluvelmente ligada ao nosso passado.
Alberto Pires de Carvalho, considerado um dos principais povoadores da região, fundador de Tiririca (hoje Itaguaçu) casou-se com uma menina “pegada a dente de cachorro”, a qual deram o nome cristão de Felícia, seqüestrada de sua aldeia indígena e “assimilada” na sociedade dos “brancos”. Em Uibaí, Venceslau Pereira Machado, fundador de Canabrava, era um mulato, ou seja, filho de português com uma ex-escrava chamada Maria Semente. Mariana, esposa de Raimundo Pereira da Rocha, fundadores de Riacho de Areia (hoje Hidrolândia) também era filha de uma “índia pegada no laço”, ou seja, de uma menina indígena capturada de sua família e aldeia e submetida a novos costumes e vidas, aos valores brancos. Tal forma de captura, algo bastante regular no Sertão, era um processo extremamente violento e sua legitimação partia de um costume da escravidão indígena.
A escravidão propriamente dita na Canabrava também houve. A compra da fazenda São Gabriel que deu origem ao município atual, se deu em 1886, e o neto de Venceslau, José Pereira da Rocha, pagou o valor da fazenda com um escravo chamado Domingos, de “qualidade” cabra, ou seja, mestiço.
Com informações que não estão no livro de Osvaldo, podemos completar o quadro. A começar, dizendo que, provavelmente, a primeira pessoa que nasceu na Canabrava foi uma escrava chamada Manoela, filha de uma africana chamada Maria. Como não havia homens adultos escravos no lugarejo, talvez Manoela fosse filha ou neta do “patriarca” (como o chamava Osvaldo) Venceslau, visto que sua mãe, provavelmente fosse Maria, uma africana, e que Manoela era “cabra”, ou seja, de pele nem tão escura para ser “preta” ou “crioula”, nem de pele tão clara para ser “mulata” como o próprio “patriarca” dos Machado. Quando Venceslau morreu em 1850, deixou 3 escravos de herança. As já citadas Maria e Manoela (com um ano de idade) e o menininho Antônio. Em Riacho d’Areia (Hidrolândia) algumas pessoas também eram propriedade de outras. Essas informações estão disponíveis em documentação no Arquivo Público do Estado da Bahia, na capital do Estado.
Ao contrário do que deixa a entender Osvaldo Alencar, que “não havia escravos no lugarejo”, havia escravos no que hoje é o município de Uibaí. Está em preparo uma dissertação de mestrado da professora e historiadora Taiane Dantas Martins sobre escravidão no município de Xique-Xique que trás bastante informações a respeito das relações escravistas no município no qual a vila de Uibaí se desenvolveu.
A escravidão sertaneja possuía algumas peculiaridades. A escravidão tendia a ser de pequena escala, mas houve fazendeiros que possuíam dezenas de homens e mulheres escravizados. Isso determina em muito a forma das relações de poder. O “patriarca” tem uma relação muito pessoal, muito íntima como o oprimido. Como prova o caso de Canabrava a intimidade era tão grande que até filhos eles tinham juntos. Essa proximidade determinada pelas relações de produção escamoteava as possibilidades de reconhecimento entre os oprimidos e favorecia as saídas individuais. As fugas são relativamente esparsas. Porém, isso não quer dizer que não havia resistência: os escravos buscavam através de negociações de ordem diversas a melhoria de suas condições de trabalho ou mesmo buscavam acumular algum tipo de poupança objetivando a compra individual da sua liberdade. Isso não quer dizer que não houve quilombos de fugitivos no sertão. O vale do rio Verde e o alto da Serra do Assuruá foram refúgios para homens e mulheres que queriam ser livres. Vicente Veloso, o ex-escravo que fugiu e acabou descobrindo o boqueirão da Canabrava, talvez tenha fugido de Morro do Chapéu ou Jacobina para algum quilombo e se perdido.
Não sabemos se há descendentes desses homens e mulheres que foram escravizados nas terras de nossa região. O fim do tráfico de escravos em 1850 drenou parte da mão-de-obra escravizada para o Sudeste, sobretudo para as lavouras de café. O preço de um escravo no vale do São Francisco tornou-se exorbitante o que estimulava a sua venda para o Rio de Janeiro. Não sabemos para onde foram parar. A escravidão era cruel. Quando Venceslau morreu, Maria foi vendida para que fosse possível fazer a divisão de bens entre os herdeiros. Talvez tenha sido o primeiro grande crime de Canabrava: a separação da mãe de sua filha recém-nascida. Mas sob os olhos frios do escravismo, não eram pessoas. Eram mercadorias, que diferiam de um animal ou de uma bruaca velha pelo alto preço no mercado que possuíam. A ideologia da escravidão impedia-os de ver que aquelas pessoas não tinham preço.
O que sabemos é que a ideologia da escravidão permanece. A discriminação contra os brasileiros que tem características físicas negras e indígenas, o preconceito contras as religiões africanas e indígenas são a nossa herança do passado de escravidão. A pobreza, a miséria, os péssimos índices de educação, a precarização das condições de trabalho das populações negras e indígenas não são obra do acaso, da falta de sorte ou da incompetência. 300 anos de escravidão, de exploração, de desumanização deixaram marcas que a abolição não foi capaz de apagar. O racismo é uma ideologia perversa que começa negando a si mesma: ninguém se assume racista, mas ele existe e continua provocando sofrimento. Uma das características de reação ao racismo é o auto-branqueamento: alisar os cabelos, tentar convencer aos outros e a si mesmo de uma brancura, de uma descendência européia. Afinal, como é que pode haver em Uibaí brancos se mesmo o fundador da localidade, um dono de escravos, o era?
Ninguém nasce racista. As pessoas aprendem isso na educação, na escola, no dia-a-dia, através de juízos de valor, julgamentos infundados, preconceito de classe, má-educação, piadas sem graça, ignorância. As pessoas aprendem a ser racistas. É um fenômeno histórico e não natural. Contudo, conforme Karl Marx “são justamente os homens que transformam as circunstâncias e (...) o próprio educador precisa ser educado”[2]. E a existência de uma educação racista implica na possibilidade de uma educação não-racista, de igualdade. Todavia, a igualdade racial é algo que se sustenta na luta por igualdade social.
Uma nova sociedade sem racismo além de ser uma possibilidade é uma necessidade!